domingo, 27 de dezembro de 2015

Feminismo para homens

Por Floyd Dell. Publicado originariamente na Revista “The Masses” (EUA), em julho de 1914. Tradução publicada originariamente na Revista Gênero & Direito, em dezembro de 2015. Traduzido por Vitor Medrado.

          A Emancipação do Homem
     
          O Feminismo tornará possível aos homens serem livres pela primeira vez. 
Atualmente, o homem comum escolhe entre ser um escravo ou ser um canalha. É mais ou menos assim que funciona.
O homem comum tende a se apaixonar, casar e ter filhos. E mais, o homem comum geralmente tem uma mãe. Ele quer vê-los todos bem cuidados, já que são incapazes de cuidar de si mesmos. Entretanto, se ele está preocupado com aqueles, ele já não é livre.
Um homem livre é um homem que está pronto para largar seu trabalho sempre que quiser. Quer ele seja um pedreiro, que deseja fazer uma greve em apoio a outros trabalhadores [sympathetic strike][1], ou um poeta, que quer parar de escrever bobagens para revistas. Seja como for, se ele não faz o que quer, ele não é livre.
Ignorar as reivindicações das mulheres dependentes, arriscar-lhes o conforto em proveito próprio ou da sociedade como um todo, leva uma boa dose de heroísmo – e alguma de canalhice também.
Alguns dos melhores espíritos entre os homens são também os menos livres. São os mais sensíveis que hesitam, e se perdem no mundo e em suas próprias almas.
E isso será verdade enquanto as mulheres como sexo forem dependentes dos homens para seu sustento. É demais pedir a um homem para ser corajoso quando sua coragem significa tirar comida da boca de uma mulher que não pode ter comida senão através dele. As coisas mais corajosas não serão realizadas no mundo até que as mulheres não tenham que procurar a ajuda dos homens.
A mudança já está em andamento. Forças econômicas irresistíveis estão recrutando mais e mais mulheres a cada ano fora do abrigo econômico da casa para o grande mundo, tornando-as trabalhadoras e assalariadas junto com os homens. E cada conquista delas, desde a educação que irá torná-las aptas para o mundo do salário, até o "igual salário para igual trabalho ", significa um libertar-se em relação aos homens. A última realização será um seguro social para a maternidade, o que irá permitir às mulheres terem filhos sem tirar a liberdade do homem. Então o homem poderá dizer a seu chefe que "ele e seu trabalho podem se esfolar um ao outro", sem ser um herói e um canalha ao mesmo tempo.
O capitalismo não vai gostar nada disso. O capitalismo não quer homens livres. Ele quer homens com esposas e filhos que sejam economicamente dependentes dele. As pensões para mães serão duramente disputadas a cada vez antes de serem ganhas. E isso não é o pior.
         Os homens não querem a liberdade que as mulheres estão lhes empurrando. Eles não querem uma chance de ser corajosos. Eles querem uma chance de ser generosos. Eles querem dar comida e roupas e uma pequena casa com cortinas de renda para alguma mulher.
Os homens querem mais a sensação de poder do que a sensação de liberdade. Eles querem mais a sensação que experimentam como provedores para as mulheres do que a sensação que experimentam como homens livres. Eles querem mais alguém dependente do que querem uma companheira. Desde que eles possam ser soberanos em um flat de trinta dólares, eles estarão bem dispostos a serem escravos no grandioso mundo lá de fora.
Eles estão com medo das mulheres deixarem de lhes pedir para fazer as coisas, de elas deixarem de dizer "obrigada!" Eles estão com medo das mulheres perderem a timidez e a fraqueza que as fazem recorrer à ajuda dos homens. Eles estão com medo da mulher emancipar as pernas com calças de trabalho. (E assim ela vai; só que elas [as calças] não serão tão feias como as roupas usadas atualmente pelos homens, se Paul Poiret[2] tiver alguma coisa a dizer sobre isso!).
Em suma, eles estão com medo de deixar de serem sultões em pequenos haréns monogâmicos. Mas o mundo não quer sultões. Ele quer homens que possam chamar as suas próprias almas de suas. E isso é o que o feminismo vai fazer para os homens – devolver-lhes suas almas, para que eles possam arriscá-las sem medo na aventura da vida.
O fato é que esse harém ocidental com o seu senhorio mesquinho sobre a mulher, e suas ineficazes volúpias após o dia de trabalho, não é um lugar adequado para um homem. A mulher já descobriu há muito tempo que esse não é um lugar adequado para ela.
O lugar adequado para homens e mulheres é o mundo. Ele é a sua verdadeira casa. As mulheres estão indo para lá. Os homens já estão lá em um sentido, mas não em outro. Eles o dominam, mas não o habitam. Eles não se atrevem. O mundo é uma casa apenas para os livres:
“Pois há sangue no campo e sangue na escuma,
E sangue no corpo quando o homem vai para casa.
E uma Voz de despedida: Quem está pela Vitória?
Quem está pela Liberdade? Quem vai para Casa?”

          Namoradas e esposas


É uma generalização masculina consagrada pelo tempo que as namoradas [sweetheart][3] são mais divertidas do que as esposas [wives]. Esta proposição na verdade implica outra, que esposas e namoradas são duas coisas distintas e diferentes. Se admitirmos a validade da última proposição, a primeira fica de pé como uma verdade inquestionável.
Como alguém enfatizou certa vez, essa é uma criação humana. Certamente a distinção na teoria e na prática entre uma mulher e uma namorada é uma criação masculina. Nenhuma mulher, pode-se dizer, depois de ter sido uma vez uma namorada, jamais iria por sua própria vontade e consentimento deixar de ser uma.
Apenas para mencionar o que significa ser uma namorada. Em primeiro lugar há o cenário, os arredores, a cena de ação. Esta é definida em virtude de sua extraordinária diversidade. É a namorada no parque, no teatro, no trem panorâmico, nos degraus da fachada, na escada de incêndio, em máquinas de refrigerantes, em jogos de beisebol, em lojas de chá, em restaurantes, na sala de estar, na cozinha, em qualquer lugar, em todo lugar, isto é, no mundo em geral. Quando duas pessoas estão namorando, elas habitam o mundo.
E elas habitam juntas, esta é a próxima questão. Essa é uma das condições de ser um namorado, você está sempre "junto" quando possível, e geralmente é possível. Parece ser uma coisa adequada para um namorado estar sempre onde o outro está. Nunca há qualquer razão, ou qualquer desculpa, para um namorado ficar em casa. O fato de que o homem não pode levar sua namorada para trabalhar com ele justifica universalmente o desleixamento com o trabalho. Mas quando ele folga, ele pode levá-la com ele, e ele faz. Ele a leva ao teatro, ele a leva ao jogo de beisebol, ele a leva para passear no Duck Creek[4] e a ensina a pescar.
Esta é a terceira questão sobre ser uma namorada. Ela não está excluída do seu círculo de convivência em virtude de diferenças de hábitos e gostos. O pressuposto é que os hábitos e os gostos deveriam ser iguais. Se ela não entende de beisebol, ele explica para ela. Se ele gosta de golfe, ele a ensina a jogar. Se ele gosta de poesia, ele se senta e recita a ela os seus poetas preferidos. Ele não permite que quaisquer diferenças triviais apareçam entre eles. Se ela foi criada com a ideia de que beber é errado, ele vai cultivar o gosto dela por coquetéis. Ele vai dar lições a ela sobre socialismo, poesia e poker, todos com tato e paciência infinitos. E ele fará tudo isso muito humildemente, sem presunção de superioridade. Ele irá introduzi-la ansiosamente às suas ideias mais preciosas, buscando a aprovação dela e ouvindo com o mais genuíno respeito as críticas dela. Eles planejam seu futuro com a sólida igualdade democrática de sócios no negócio da vida.
Tudo isso é muito encantador. Mas, com o decorrer do tempo, eles se casam e muito pouco tempo depois a namorada se torna uma esposa. Ela ainda é a mesma pessoa, ela não mudou. Mas as condições mudaram... Era uma vez um homem – eu não tenho a pretensão de apoiá-lo – que tinha uma esposa e também uma namorada, e ele gostava tão mais da namorada do que da esposa que ele convenceu sua esposa a divorciar-se dele e então se casou com a namorada; mas ele simplesmente teve que arrumar outra namorada, pois deu na mesma de antes. O pobre companheiro não poderia compreender isso. Ele pensou que deveria haver alguma magia misteriosa e maléfica na cerimônia de casamento que estragava as coisas. Mas essa superstição não pode nos deter. Prossigamo-nos a uma investigação sobre onde a diferença realmente está.
Há a questão do encontro. Toda a questão de se encontrar com uma namorada é que nunca é totalmente certo que ela realmente vai estar lá. Normalmente, aliás, ela está atrasada. Uns ficam ansiosos ou irritados, mas jamais complacentes sobre a vinda dela. Ela pode ter entendido mal ou esquecido qual é a esquina. Ela pode estar esperando em outro lugar. Ou ela pode ter mudado de ideia – um pensamento devastador... Mas com uma esposa é bastante diferente. É impossível para ela esquecer o lugar, pois há apenas um lugar. Não é nem na estação, nem no parque e nem nos degraus da biblioteca. É um lugar totalmente fora do mundo. E ela sempre estará lá. Ou, pelo menos, se ela não estiver lá, ela deveria estar. "Lugar de mulher é em casa."
Este ditado aplica-se apenas às esposas. Ele não se aplica às namoradas. Nenhum homem jamais pensou que sua namorada pertence a casa. Ele se lembra da casa dela com hostilidade e desconfiança e a mantém longe dela tanto quanto possível. É somente quando ela é uma esposa que ele começa a pensar que tem o direito de esperar que ela estivesse lá. Quando ele pensa nela, é sempre nesse cenário. E ele pensa nela lá com satisfação. Quando ele vai lá encontrá-la, ele não vai ansiosamente, com o coração acelerado. A casa não é um encontro. Não é uma das deliciosas esquinas do mundo onde dois companheiros podem se encontrar para uma aventura. É um lugar fora do mundo onde se mantém a esposa.
A casa é um lugar muito diferente do resto do mundo. É diferente em virtude das coisas que não são feitas lá. No mundo, qualquer coisa pode acontecer. Qualquer restaurante pode fazer nascer um negócio. Qualquer barbearia pode ser um colégio eleitoral. Mas os negócios e a política não pertencem à casa. Eles são tão fora de lugar naquela atmosfera quanto um “surto” ou uma exibição de fogos de artifício. E por não serem cultivados em casa, eles passam a não serem pensados lá. Cozinha, roupas, crianças – estes são os temas de interesse para quem está preso em casa. Essas coisas são interessantes. Elas são tão importantes como beisebol ou política. Mas lhes falta certo apelo imaginativo. Elas não são suficientemente homéricas. Um vestido novo é uma realização, mas não o mesmo tipo de realização de um home run[5]. Um novo tipo de salada é uma experiência interessante, mas ninguém fica ao redor oferecendo para apostar dinheiro sobre os resultados. Em uma palavra, a casa é um pouco maçante.
Quando você tem uma mulher em uma caixa e você paga o aluguel no caixa, o relacionamento dela com você sem perceber muda de caráter. Ele perde a boa excitação da democracia. Ele deixa de ser companheirismo, porque companheirismo só é possível na democracia. Já não é uma comunhão de vida – é uma quebra de vida em pedaços. Meia-vida – cozinha, roupas e crianças; meia-vida – negócios, política e beisebol. Não faz muita diferença qual é a metade mais pobre. Seja qual for a metade, quando se trata de vida, não é quase nada de todo jeito.
É claro que essa diferenciação artificial não alcança especificamente cada casamento em particular. Há um esforço em desconstruí-la. É um esforço honesto. Todavia, a nossa civilização está construída sobre essa diferenciação. Para desconstruir completamente essa diferenciação, será necessário desconstruir todos os códigos, restrições e preconceitos que mantêm as mulheres fora do grande mundo. É no grande mundo que o homem encontra sua namorada e é naquela caixinha do lado de fora do mundo que ele a perde. Quando ela deixar aquela caixa e voltar para o grande mundo, cidadã e trabalhadora, então com surpresa e alegria ele vai descobri-la novamente, e jamais perdê-la.
As mulheres e o voto[6]

        Se o culto da superioridade masculina for mantido, então existirá algumas coisas que as mulheres não poderão fazer.
      Desde os polinésios, com os seus mistérios sagrados que as mulheres não podiam testemunhar, até os cavalheiros modernos, em seus clubes exclusivamente para homens, sempre houve o instinto de dignificar o sexo masculino, proibindo alguns dos seus privilégios em relação às mulheres.
Contrariando esse instinto, há o instinto da camaradagem. O homem como companheiro da mulher viola alegremente os tabus estabelecidos pelo homem como varão.
Como um varão, o homem tem reservado para si mesmo os vícios cerimoniais de beber e fumar. Como um companheiro da mulher, ele se diverte iniciando-a nesses mistérios.
Enquanto os homens eram camaradas somente com tipos especiais de mulheres, excluindo suas esposas, fumar e beber tendiam a ser restritos a atrizes, dançarinas e cortesãs. Mas agora suas esposas se apropriaram desses hábitos, em parte para o deleite e em parte para o escândalo dos homens. Há um persistente ressentimento nesta infração de um costume viril.
É da mesma forma com esportes. Não há nenhuma razão por que as mulheres não possam fazer exercícios atléticos para competição, assim como os homens. Elas fazem e os homens as deixam, somente expressando seu ressentimento semiconsciente na sua postura debochada. Mas eles se ressentem.
É o mesmo com as roupas. Eles fazem regras para manter as mulheres longe das ruas quando elas se aventuram a usar as novas saias tipo-calças. Eles se juntam em multidões e zombam da mulher audaz, que não deixa o homem nem mesmo ter suas próprias calças.
Palavrões - sim, é da mesma forma com os palavrões.
E é da mesma forma, precisamente, com o voto. Todas as razões que os homens dão para não querer que as mulheres votem são hipócritas. Sua verdadeira razão é um incômodo profundo na dessacralização de um mistério masculino. O voto é tudo o que nos resta. As mulheres tomaram tudo o que poderíamos chamar de nosso, e agora isso – é demais!
“Será que não podemos fazer nada por nossa conta?!”


[1] Nota do tradutor: Optei por traduzir “sympathetic strike” por “greve em apoio a outros trabalhadores”. Em inglês,  “sympathetic strike”  designa a greve feita por um grupo de trabalhadores não em favor de si mesmos ou contra o seu próprio empregador, mas em apoio à greve de outros grupos.
[2] Nota do Tradutor: O francês Paul Poiret (1879-1944) foi um dos mais importantes estilistas da história. É conhecido por ter reinventado a silhueta feminina no início do século XX. Em oposição ao antigo e desconfortável espartilho, Poiret criou o sutiã e a calcinha modernos. Na passagem acima, o autor faz referência às novas calças para mulheres, uma invenção de Poiret.
[3] Nota do tradutor: No inglês, o termo “sweetheart” (“doce coração” em tradução literal) é usado como uma maneira carinhosa de se referir à(ao) namorada(o) e pode significar também “amor”, “coração” e “amada(o)”. Por outro lado, o termo “wife” (no plural, “wives”) tem o sentido de “esposa”, “senhora” e até “dona de casa”.
[4] Nota do tradutor: O autor provavelmente se refere ao canal Duck Creek. Localizado na região metropolitana da Cidade de  Nova Iorque, o canal é conhecido como um excelente espaço para a prática de pesca esportiva.
[5] Nota do tradutor: O “home run” é uma das jogadas mais excitantes do jogo de beisebol.
[6] Nota do tradutor: Em 1914, quando este texto foi escrito, os Estados Unidos ainda não haviam reconhecido universalmente o direito das mulheres ao voto, o que se deu apenas em 1920. No caso do Brasil, apesar de existirem pioneirismo a partir da década de 1920, foi apenas com a Constituição Federal de 1946 que o direito das mulheres ao sufrágio universal foi reconhecido.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

terça-feira, 29 de setembro de 2015

A humildade na vida acadêmica: o depoimento de Sandel sobre Rawls

No mesmo dia em que li um artigo da The Economist no qual o autor defende que o Obama é um "rawlsiano" (veja o artigo aqui), me deparei também com o seguinte depoimento de Michael Sandel sobre John Rawls, um dos mais importantes pensadores do século XX, falecido em 2002:
"É quase um milagre, ou pelo menos uma surpresa, encontrar um filósofo americano mencionado na companhia de Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx e John Stuart Mill. (...) A modéstia de Rawls era lendária, assim como sua gentileza com estudantes e com os colegas mais jovens. Eu li pela primeira Uma Teoria da Justiça como um estudante de pós-graduação em Oxford, em 1975, e fiz dela o tema da minha dissertação. Quando vim para a Harvard, como um jovem professor assistente no departamento de administração pública, eu nunca tinha visto a figura cujo formidável trabalho sobre o liberalismo eu tinha estudado. Pouco tempo depois que eu cheguei, meu telefone tocou. Uma voz hesitante do outro lado disse: 'aqui é John Rawls, R - A - W - L - S'. Foi como se Deus tivesse me ligado para me convidar para um almoço e tivesse soletrado seu nome para o caso de eu não saber quem ele era" (Michael Sandel)
É ou não é uma lição de humildade?

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Kant para iniciantes (legendado em português)

Confiram abaixo o primeiro vídeo da série alemã "Kant para iniciantes", com legendas em português. Uma excelente e divertida introdução ao pensamento de Immanuel Kant.


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sem "patrimônio comum": por que a Internet não pode ser regulada como o mar, por Matthew Matechik

Na era digital de acelerada evolução, o jogador mais forte no cenário internacional não é necessariamente o Estado com maiores armas ou o maior número de soldados. Ao contrário, é o ator cibernético, o qual pode ou não pode ser um Estado, quem é capaz de forma mais eficaz aproveitar a Internet para atingir os seus objetivos. Como os antigos capitães do mar, esses atores navegam pelo labirinto da Internet para descobrir, para comercializar, para saquear e para conquistar. Pacotes de dados digitais são seus navios. A Internet é o seu mar.

Como o mar, a internet circunda o globo. Como o mar, a Internet é usada para atividades benignas, como o comércio e o lazer, mas também para atividade malignas, como o roubo e o conflito. O mar tem marinheiros e piratas; a internet tem profissionais cibernéticos e hackers. A comparação parece adequada e levanta a questão: o Direito Internacional pode regular a Internet da mesma forma que regula o mar?

As semelhanças entre a Internet  e o mar como veículos transmissores sugerem que os princípios internacionais que regem o uso do mar poderiam efetivamente ser aplicados ao uso da Internet. Após exame, todavia, essa teoria se desmorona rapidamente por vários motivos. Talvez o mais importante obstáculo é a falta de uma “patrimônio comum” para a Internet. O “patrimônio comum” é o componente fundamental que tem permitido o direito do mar se desenvolver.

Os costumes que regem o uso do mar provavelmente começaram a surgir quando os seres humanos encontraram outros seres humanos pela primeira vez no mar.  Esses costumes cresceram para além do reconhecimento de que o mar era um espaço compartilhado incrivelmente vasto que nenhuma nação poderia possuir como se faz com o território terrestre. O mar foi reconhecido como patrimônio comum da humanidade. Nesse espaço compartilhado, fraçoes de mar cruzam tanto com aliados, como com inimigos. Costumes e leis continuaram a se desenvolver ao longo dos milênios para regular esses encontros. Como o acesso humano ao mar aumentou, as normas internacionais também aumentaram, incluindo a codificação de muitos desses costumes na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM).  Estas leis foram baseadas na ideia de que todos os seres humanos receberam o direito ao mar porque era um patrimônio comum. As leis promoveram o uso compartilhado do mar, ao mesmo tempo em que dissuadiram ações ilegais no mar.
Como um fenômeno recente, o Internet não tem esse “patrimônio comum”, embora tenha-se tornado um recurso comum. A Internet tem origem em um projeto de pesquisa feito pela Agência de Pesquisa Avançada de Projetos de Defesa (DARPA), durante a década de 1960. A sua utilização cresceu exponencialmente até que se tornou a super-rede verdadeiramente globalizada dos dias de hoje, chegando a uma estimativa de 3 bilhões de pessoas. Por que os Estados Unidos foram o principal impulsionador da rápida adesão da Internet, os seus padrões de infra-estrutura e uso desenvolveram de tal forma que a maior parte do tráfego de internet do mundo passa pelos Estados Unidos. Esta posição oferece vantagens e oportunidades exclusivas para os Estados Unidos a que os  Estados Unidos não devem renunciar.


Outras nações têm mais recentemente tomado medidas para fixar a sua própria posição em relação à Internet, que também lhes oferece vantagens únicas e se alinha a seus interesses. Por exemplo, a China tem erguido "O Grande Firewall" em torno de usuários chineses de internet, permitindo à China censurar quais dados podem ser acessados por usuários chineses. A China está aproveitando seu poder de Internet para promover seus interesses em detrimento da liberdade no uso e acesso à Internet. Enquanto isso, na União Europeia, alguns líderes europeus estão defendendo novas regulamentações da Internet que poderiam fortalecer a situação das empresas européias de tecnologia contra os seus congêneres americanos. O fortalecimento do espaço digital não deverá permitir que a comunidade internacional adote uma  "liberdade da Internet", em semelhança com a liberdade dos mares. Muito pelo contrário, de fato, a tendência parece ser o aumento das restrições à utilização pública.

Mesmo que a comunidade internacional caracterize a Internet como um recurso a ser compartilhado por todos, a regulação parece ser tecnicamente impossível, pelo menos no momento, já que o tráfego de Internet não pode ser corretamente quantificado e observado, como pode ser feito com as embarcações marítimas. Regulamentos do mar são exequíveis em grande parte porque os países são capazes de observar um número significativamente quantificável de navios e reagir, empregando a medida legal apropriada. No mar, o regulador pode, por exemplo, reagir à atividade ilegal ao embarcar em um navio e procurar por aquela.

Na internet, o regulador deveria igualmente fazer inspeções de alguma maneira, mas há demasiados pacotes de dados para analisar. Até o final de 2016, um número estimado de 1.000.000.000.000 gigabytes de dados irá passar pela Internet anualmente. Esse número é muito grande para se compreender o seu significado. Encontrar a atividade ilegal dentre aquela enorme quantidade de dados e reagir de forma adequada e ainda promover a liberdade na Internet é tecnicamente impossível, dado o estado atual da tecnologia. Há simplesmente dados demais na internet.

A falta de “patrimônio comum” para a internet e as limitações tecnológicas na aplicação generalizada torna a aplicação dos princípios da lei do mar à Internet impossível atualmente. A comunidade internacional deve conduzir a Internet com uma nova perspectiva que considere suas características modernas e únicas. A Convenção do Conselho Europeu sobre o Cibercrime, que entrou em vigor em 2004, é atualmente a principal convenção internacional nesta matéria. A Convenção identifica numerosos crimes cibernéticos que os signatários devem abordar em suas legislações penais nacionais, exige que certos procedimentos de aplicação da lei sejam postos em prática, e exige que os signatários cooperem para investigar e processar crimes cibernéticos. A Convenção foi ratificada por quarenta e sete Estados até agora, e foi assinada por outros sete.

A Convenção apresenta algumas promessas reais, pois ele aborda exclusivamente questões cibernéticas e tem tido ao menos alguma adoção. No entanto, ela ainda carece de maior utilidade global, porque faz pouco para resolver questões cibernéticas relativas à relação entre Estados e carece de adesão de algumas ciber-potências, nomeadamente China e Rússia. A não adoção generalizada implica que atores cibernéticos com interesses concorrentes tenham um longo caminho a percorrer antes que sejam capazes de chegar a um acordo sobre uma regulamentação internacional que funcione de forma tão eficaz como os regulamentos sobre o mar.


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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014