Por Floyd Dell. Publicado originariamente
na Revista “The Masses” (EUA), em julho de 1914. Tradução publicada originariamente na Revista Gênero & Direito, em dezembro de 2015. Traduzido por Vitor Medrado.
A Emancipação do Homem
O Feminismo tornará possível aos homens serem livres pela primeira vez.
O Feminismo tornará possível aos homens serem livres pela primeira vez.
Atualmente, o homem comum escolhe
entre ser um escravo ou ser um canalha. É mais ou menos assim que funciona.
O
homem comum tende a se apaixonar, casar e ter filhos. E mais, o homem comum
geralmente tem uma mãe. Ele quer vê-los todos bem cuidados, já que são
incapazes de cuidar de si mesmos. Entretanto, se ele está preocupado com aqueles, ele
já não é livre.
Um homem livre é um homem que está
pronto para largar seu trabalho sempre que quiser. Quer ele seja um pedreiro,
que deseja fazer uma greve em apoio a outros trabalhadores [sympathetic strike][1], ou
um poeta, que quer parar de escrever bobagens para revistas. Seja como for,
se ele não faz o que quer, ele não é livre.
Ignorar as reivindicações das
mulheres dependentes, arriscar-lhes o conforto em proveito próprio ou da
sociedade como um todo, leva uma boa dose de heroísmo – e alguma de canalhice também.
Alguns dos melhores espíritos entre os homens são também os menos livres. São os mais
sensíveis que hesitam, e se perdem no mundo e em suas próprias almas.
E isso será verdade enquanto as
mulheres como sexo forem dependentes dos homens para seu sustento. É demais
pedir a um homem para ser corajoso quando sua coragem significa tirar comida da
boca de uma mulher que não pode ter comida senão através dele. As coisas mais
corajosas não serão realizadas no mundo até que as mulheres não tenham que procurar
a ajuda dos homens.
A mudança já está em andamento. Forças
econômicas irresistíveis estão recrutando mais e mais mulheres a cada ano fora
do abrigo econômico da casa para o grande mundo, tornando-as trabalhadoras e
assalariadas junto com os homens. E cada conquista delas, desde a educação que irá
torná-las aptas para o mundo do salário, até o "igual salário para igual trabalho
", significa um libertar-se em relação aos homens. A última realização
será um seguro social para a maternidade, o que irá permitir às mulheres terem
filhos sem tirar a liberdade do homem. Então o homem poderá dizer a seu chefe
que "ele e seu trabalho podem se esfolar um ao outro", sem ser um
herói e um canalha ao mesmo tempo.
O capitalismo não vai gostar nada
disso. O capitalismo não quer homens livres. Ele quer homens com esposas e
filhos que sejam economicamente dependentes dele. As pensões para mães serão duramente
disputadas a cada vez antes de serem ganhas. E isso não é o pior.
Os homens não querem a liberdade que
as mulheres estão lhes empurrando. Eles não querem uma chance de ser corajosos.
Eles querem uma chance de ser generosos. Eles querem dar comida e roupas e uma pequena
casa com cortinas de renda para alguma mulher.
Os homens querem mais a sensação de
poder do que a sensação de liberdade. Eles querem mais a sensação que
experimentam como provedores para as mulheres do que a sensação que
experimentam como homens livres. Eles querem mais alguém dependente do que
querem uma companheira. Desde que eles possam ser soberanos em um flat de trinta dólares, eles estarão bem
dispostos a serem escravos no grandioso mundo lá de fora.
Eles
estão com medo das mulheres deixarem de lhes pedir para fazer as coisas, de
elas deixarem de dizer "obrigada!" Eles estão com medo das mulheres
perderem a timidez e a fraqueza que as fazem recorrer à ajuda dos homens. Eles
estão com medo da mulher emancipar as pernas com calças de trabalho. (E assim ela
vai; só que elas [as calças] não serão tão feias como as roupas usadas
atualmente pelos homens, se Paul Poiret[2]
tiver alguma coisa a dizer sobre isso!).
Em suma, eles estão com medo de deixar
de serem sultões em pequenos haréns monogâmicos. Mas o mundo não quer sultões.
Ele quer homens que possam chamar as suas próprias almas de suas. E isso é o
que o feminismo vai fazer para os homens – devolver-lhes suas almas, para que
eles possam arriscá-las sem medo na aventura da vida.
O
fato é que esse harém ocidental com o seu senhorio mesquinho sobre a mulher, e
suas ineficazes volúpias após o dia de trabalho, não é um lugar adequado para
um homem. A mulher já descobriu há muito tempo que esse não é um lugar adequado
para ela.
O lugar adequado para homens e
mulheres é o mundo. Ele é a sua verdadeira casa. As mulheres estão indo para
lá. Os homens já estão lá em um sentido, mas não em outro. Eles o dominam, mas
não o habitam. Eles não se atrevem. O mundo é uma casa apenas para os livres:
“Pois
há sangue no campo e sangue na escuma,
E sangue no corpo quando o homem vai para casa.
E uma Voz de despedida: Quem está pela Vitória?
Quem está pela Liberdade? Quem vai para Casa?”
Namoradas e esposas
Namoradas e esposas
É
uma generalização masculina consagrada pelo tempo que as namoradas [sweetheart][3]
são mais divertidas do que as esposas [wives]. Esta proposição na
verdade implica outra, que esposas e namoradas são duas coisas distintas e
diferentes. Se admitirmos a validade da última proposição, a primeira fica de
pé como uma verdade inquestionável.
Como alguém enfatizou certa vez, essa
é uma criação humana. Certamente a distinção na teoria e na prática entre uma
mulher e uma namorada é uma criação masculina. Nenhuma mulher, pode-se dizer,
depois de ter sido uma vez uma namorada, jamais iria por sua própria vontade e
consentimento deixar de ser uma.
Apenas
para mencionar o que significa ser uma namorada. Em primeiro lugar há o
cenário, os arredores, a cena de ação. Esta é definida em virtude de sua extraordinária
diversidade. É a namorada no parque, no teatro, no trem panorâmico, nos degraus
da fachada, na escada de incêndio, em máquinas de refrigerantes, em jogos de
beisebol, em lojas de chá, em restaurantes, na sala de estar, na cozinha, em
qualquer lugar, em todo lugar, isto é, no mundo em geral. Quando duas pessoas
estão namorando, elas habitam o mundo.
E elas habitam juntas, esta é a próxima
questão. Essa é uma das condições de ser um namorado, você está sempre
"junto" quando possível, e geralmente é possível. Parece ser uma
coisa adequada para um namorado estar sempre onde o outro está. Nunca há
qualquer razão, ou qualquer desculpa, para um namorado ficar em casa. O fato de
que o homem não pode levar sua namorada para trabalhar com ele justifica universalmente
o desleixamento com o trabalho. Mas quando ele folga, ele pode levá-la com ele,
e ele faz. Ele a leva ao teatro, ele a leva ao jogo de beisebol, ele a leva
para passear no Duck Creek[4] e a
ensina a pescar.
Esta
é a terceira questão sobre ser uma namorada. Ela não está excluída do seu
círculo de convivência em virtude de diferenças de hábitos e gostos. O
pressuposto é que os hábitos e os gostos deveriam ser iguais. Se ela não
entende de beisebol, ele explica para ela. Se ele gosta de golfe, ele a ensina a
jogar. Se ele gosta de poesia, ele se senta e recita a ela os seus poetas preferidos.
Ele não permite que quaisquer diferenças triviais apareçam entre eles. Se ela
foi criada com a ideia de que beber é errado, ele vai cultivar o gosto dela por
coquetéis. Ele vai dar lições a ela sobre socialismo, poesia e poker, todos com
tato e paciência infinitos. E ele fará tudo isso muito humildemente, sem
presunção de superioridade. Ele irá introduzi-la ansiosamente às suas ideias
mais preciosas, buscando a aprovação dela e ouvindo com o mais genuíno respeito
as críticas dela. Eles planejam seu futuro com a sólida igualdade democrática
de sócios no negócio da vida.
Tudo
isso é muito encantador. Mas, com o decorrer do tempo, eles se casam e muito
pouco tempo depois a namorada se torna uma esposa. Ela ainda é a mesma pessoa,
ela não mudou. Mas as condições mudaram... Era uma vez um homem – eu não tenho
a pretensão de apoiá-lo – que tinha uma esposa e também uma namorada, e ele
gostava tão mais da namorada do que da esposa que ele convenceu sua esposa a
divorciar-se dele e então se casou com a namorada; mas ele simplesmente teve
que arrumar outra namorada, pois deu na mesma de antes. O pobre companheiro não
poderia compreender isso. Ele pensou que deveria haver alguma magia misteriosa
e maléfica na cerimônia de casamento que estragava as coisas. Mas essa
superstição não pode nos deter. Prossigamo-nos a uma investigação sobre onde a
diferença realmente está.
Há a questão do encontro. Toda a
questão de se encontrar com uma namorada é que nunca é totalmente certo que ela
realmente vai estar lá. Normalmente, aliás, ela está atrasada. Uns ficam ansiosos
ou irritados, mas jamais complacentes sobre a vinda dela. Ela pode ter
entendido mal ou esquecido qual é a esquina. Ela pode estar esperando em outro
lugar. Ou ela pode ter mudado de ideia – um pensamento devastador... Mas com
uma esposa é bastante diferente. É impossível para ela esquecer o lugar, pois
há apenas um lugar. Não é nem na estação, nem no parque e nem nos degraus da
biblioteca. É um lugar totalmente fora do mundo. E ela sempre estará lá. Ou,
pelo menos, se ela não estiver lá, ela deveria estar. "Lugar de mulher é
em casa."
Este ditado aplica-se apenas às
esposas. Ele não se aplica às namoradas. Nenhum homem jamais pensou que sua
namorada pertence a casa. Ele se lembra da casa dela com hostilidade e desconfiança
e a mantém longe dela tanto quanto possível. É somente quando ela é uma esposa
que ele começa a pensar que tem o direito de esperar que ela estivesse lá.
Quando ele pensa nela, é sempre nesse cenário. E ele pensa nela lá com satisfação.
Quando ele vai lá encontrá-la, ele não vai ansiosamente, com o coração acelerado.
A casa não é um encontro. Não é uma das deliciosas esquinas do mundo onde dois
companheiros podem se encontrar para uma aventura. É um lugar fora do mundo
onde se mantém a esposa.
A
casa é um lugar muito diferente do resto do mundo. É diferente em virtude das
coisas que não são feitas lá. No mundo, qualquer coisa pode acontecer. Qualquer
restaurante pode fazer nascer um negócio. Qualquer barbearia pode ser um
colégio eleitoral. Mas os negócios e a política não pertencem à casa. Eles são
tão fora de lugar naquela atmosfera quanto um “surto” ou uma exibição de fogos
de artifício. E por não serem cultivados em casa, eles passam a não serem pensados
lá. Cozinha, roupas, crianças – estes são os temas de interesse para quem está preso
em casa. Essas coisas são interessantes. Elas são tão importantes como beisebol
ou política. Mas lhes falta certo apelo imaginativo. Elas não são suficientemente
homéricas. Um vestido novo é uma realização, mas não o mesmo tipo de realização
de um home run[5].
Um novo tipo de salada é uma experiência interessante, mas ninguém fica ao
redor oferecendo para apostar dinheiro sobre os resultados. Em uma palavra, a
casa é um pouco maçante.
Quando
você tem uma mulher em uma caixa e você paga o aluguel no caixa, o
relacionamento dela com você sem perceber muda de caráter. Ele perde a boa
excitação da democracia. Ele deixa de ser companheirismo, porque companheirismo
só é possível na democracia. Já não é uma comunhão de vida – é uma quebra de
vida em pedaços. Meia-vida – cozinha, roupas e crianças; meia-vida – negócios,
política e beisebol. Não faz muita diferença qual é a metade mais pobre. Seja
qual for a metade, quando se trata de vida, não é quase nada de todo jeito.
É
claro que essa diferenciação artificial não alcança especificamente cada casamento
em particular. Há um esforço em desconstruí-la. É um esforço honesto. Todavia,
a nossa civilização está construída sobre essa diferenciação. Para desconstruir
completamente essa diferenciação, será necessário desconstruir todos os
códigos, restrições e preconceitos que mantêm as mulheres fora do grande mundo.
É no grande mundo que o homem encontra sua namorada e é naquela caixinha do
lado de fora do mundo que ele a perde. Quando ela deixar aquela caixa e voltar
para o grande mundo, cidadã e trabalhadora, então com surpresa e alegria ele
vai descobri-la novamente, e jamais perdê-la.
As mulheres e o voto[6]
Se o culto da superioridade masculina for mantido, então existirá algumas coisas que as mulheres não poderão fazer.
Se o culto da superioridade masculina for mantido, então existirá algumas coisas que as mulheres não poderão fazer.
Contrariando esse instinto, há o
instinto da camaradagem. O homem como companheiro da mulher viola alegremente
os tabus estabelecidos pelo homem como varão.
Como um varão, o homem tem reservado
para si mesmo os vícios cerimoniais de beber e fumar. Como um companheiro da
mulher, ele se diverte iniciando-a nesses mistérios.
Enquanto os homens eram camaradas
somente com tipos especiais de mulheres, excluindo suas esposas, fumar e beber
tendiam a ser restritos a atrizes, dançarinas e cortesãs. Mas agora suas esposas
se apropriaram desses hábitos, em parte para o deleite e em parte para o
escândalo dos homens. Há um persistente ressentimento nesta infração de um costume
viril.
É
da mesma forma com esportes. Não há nenhuma razão por que as mulheres não possam
fazer exercícios atléticos para competição, assim como os homens. Elas fazem e
os homens as deixam, somente expressando seu ressentimento semiconsciente na
sua postura debochada. Mas eles se ressentem.
É o mesmo com as roupas. Eles fazem regras
para manter as mulheres longe das ruas quando elas se aventuram a usar as novas
saias tipo-calças. Eles se juntam em multidões e zombam da mulher audaz, que
não deixa o homem nem mesmo ter suas próprias calças.
Palavrões - sim, é da mesma forma com
os palavrões.
E
é da mesma forma, precisamente, com o voto. Todas as razões que os homens dão para
não querer que as mulheres votem são hipócritas. Sua verdadeira razão é um
incômodo profundo na dessacralização de um mistério masculino. O voto é tudo o
que nos resta. As mulheres tomaram tudo o que poderíamos chamar de nosso, e
agora isso – é demais!
“Será
que não podemos fazer nada por nossa
conta?!”
[1] Nota do tradutor: Optei
por traduzir “sympathetic strike” por “greve em apoio a outros trabalhadores”.
Em inglês, “sympathetic strike” designa a greve feita por um grupo de
trabalhadores não em favor de si mesmos ou contra o seu próprio empregador, mas
em apoio à greve de outros grupos.
[2] Nota do Tradutor: O
francês Paul Poiret (1879-1944) foi um dos mais importantes estilistas da
história. É conhecido por ter reinventado a silhueta feminina no início do
século XX. Em oposição ao antigo e desconfortável espartilho, Poiret criou o
sutiã e a calcinha modernos. Na passagem acima, o autor faz referência às novas
calças para mulheres, uma invenção de Poiret.
[3] Nota do tradutor: No
inglês, o termo “sweetheart” (“doce coração” em tradução literal) é usado como
uma maneira carinhosa de se referir à(ao) namorada(o) e pode significar também
“amor”, “coração” e “amada(o)”. Por outro lado, o termo “wife” (no plural,
“wives”) tem o sentido de “esposa”, “senhora” e até “dona de casa”.
[4] Nota do tradutor: O
autor provavelmente se refere ao canal Duck Creek. Localizado na região
metropolitana da Cidade de Nova Iorque,
o canal é conhecido como um excelente espaço para a prática de pesca esportiva.
[5] Nota do tradutor: O
“home run” é uma das jogadas mais excitantes do jogo de beisebol.
[6] Nota do tradutor: Em
1914, quando este texto foi escrito, os Estados Unidos ainda não haviam
reconhecido universalmente o direito das mulheres ao voto, o que se deu apenas
em 1920. No caso do Brasil, apesar de existirem pioneirismo a partir da década
de 1920, foi apenas com a Constituição Federal de 1946 que o direito das
mulheres ao sufrágio universal foi reconhecido.